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De Peixes e Pássaros

Companhia Suspensa (MG / Brasil)

(2008)

De Peixes e Pássaros é tecido sobre imagens/ pinturas de Marc Chagall e situações-memórias dos intérpretes criadores.

As "paisagens? chagallianas, assim como as cenas que dividem o espetáculo, são povoadas por personagens que voam, seres que se metamorfoseiam em pássaros, peixes, e touros, homens e mulheres em festa ou luto; artistas de circo, bailarinas e músicos, configurando universos de humor e melancolia, fuga e leveza. A espacialidade do espetáculo propõe uma subversão do lugar como dado concreto, permitindo por exemplo, que um trapézio possa ser uma porta, um balanço ou o ombro do pai. Três balanços (trapézios), três bancos, um colchão, e uma cabeça de touro formam o conjunto dos materiais em cena.

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"Desenhando o limite do bairro, a rua acompanhada a linha do trem. Ali, os galpões obrigam oficinas, gráficas, pequenas fábricas. Entro em um deles, que se assemelha aos demais, mas que, se reparo bem, está suspenso, a um ou dois centímetros do solo. Na penumbra, atravesso um espaço amplo e vazio até um pequeno palco, ao fundo, com poucos elementos de cena: dois trapézios, o colchão, dois banquinhos e uma cabeça de madeira.

O ensaio vai começar. Não há ainda iluminação, cenário, figurino. O próprio diretor opera a trilha sonora, em um pequeno CD player. Três atores estão em cena e parecem levemente inquietos, curiosos com o olhar estrangeiro. Meu lugar de espectador é ainda incômodo: um mundo começa a se abrir sem que o outro - de onde venho - tenha se interrompido: a cidade, os carros, o trabalho...

Pouco a pouco, me ajeito nesse espaço intermediário - entre a realidade e a cena - onde se cria, diante dos olhos, um universo por vir. O ensaio é esse intervalo em que se experimenta um mundo ainda por se criar, mas que, ao mesmo tempo, já existe, já pode ser experienciado pelos atores, pelo público. Trata-se de um mundo que se experimenta enquanto se cria.

A matéria desse universo é a memória: ali, os objetos de cena são como os brinquedos de um baú dispersos pelo chão. Algumas peças permanecem, outras se perderam, pedaços de brinquedos antigos se reiventam junto aos novos. A memória, nos diz Walter Benjamim, é uma escritura "em que a recordação é a trama e o esqueciemnto a urdidura". Seu procedimento é a montagem, seu tempo está suspenso entre um passado que resta e um futuro ainda precário que já existe, mas apenas como esboço, como invenção.

No espaço da memória, os corpos parecem estar fora de lugar: eles flutuam, pairam, se esquivam, passam rente, estranham os objetos com os quais interagem, inventam para eles novos usos. Os corpos estão em desequilíbrio, como se novamente aprendessem a andar, em um universo cuja gravidade é outra, cujos objetos possuem peso e forma inauditos.

Este é um mundo de metamorfoses e interações: um corpo se transforma em outro, o trapézio se transforma em mirante, o mirante em abismo, o abismo em colchão, o colchão se torna um abrigo, o abrigo, um muro, o muro vira novamente um colchão, a beira de uma cama onde os amigos conversam (ou simplesmente permanecem em silêncio). Nesse universo instável, em que uma coisa é logo outra coisa, os corpos estão sempre mergulhados em certo mistério.

Assisto ao ensaio e a economia do espetáculo começa a se tornar um mundo, aquele das metamorfoses, das flutuações, suspenso, por um fio, entre o passado e o futuro. Ele agora já tem cenário e figurino: é noite e os objetos cintilam, se deixam apenas entrever na penumbra. As bailarinas de saias coloridas tentam se equilibrar de salto sobre o colchão. Os cabelos ganham tranças que se tramam umas às outras. O ator, de roupa sóbria, parece o engenheiro dessas metamorfoses todas. O seu cálculo é o do delírio.

Apollinaire dizia de seu amigo Chagall, que ele era o pintor do sobrenatural. Mas, em certo sentido, o seu imaginário nos parece estranhamente próximo, cotidiano, familiar. Com a diferença de que, agora, nos atentamos menos às formas do que às metamorfoses. Nossos olhos, nosso corpos passam de humano a pássaro, de pássaro a peixe, de peixe a touro, de touro a gato, de gato a trapezista, de trapezista a bailarina, de bailarina a estrela... esse é o mesmo mundo, o nosso. Mas se você reparar bem, tudo parece levemente suspenso, como se, em um lapso, uma distração, a realidade tivesse perdido um pouco de sua gravidade.?

André Brasil - ensaista e curador

(Texto transcrito do programa original do espetáculo)

Ficha Técnica

Direção e dramaturgia: Tarcísio Ramos Homem

Criação e interpretação: Lourenço Marques, Patrícia Manata, Tana Guimarães

Cenário e figurino: Susana Bastos e Ana Vaz

Confecção dos vestidos: Luiz Cláudio Silva

Confecção das malhas: Brenda Vaz

Cabeça de touro: Eduardo Felix

Trilha sonora: Lênis Rino

Técnico de som: Robson Nogueira

Iluminação: Leonardo Pavanello

Técnico de luz: Cristiano Medeiros

Fotos: Guto Muniz

Preparação vocal: Raquel Pires

Desenhos e criação gráfica: Rodrigo Borges

Produção: Sheila Katz

Gestão Cultural: Cristiani Papini

Excerto do texto "A coisa me escapa entre os dedos?: Rodrigo Naves

Ensaísta e curador: André Brasil

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